Gisele Vitória
Jus Esperniandi é uma expressão muito usada no meio jurídico, mas
inexistente no latim. O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo
Tribunal Federal, recorreu ao seu significado para comentar a conversa
grampeada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que desqualificam o
Supremo como “Corte acovardada”. Indagado sobre a gravação, Marco
Aurélio resumiu: “É o direito de espernear”.
Para o ministro, o País está sangrando e os acontecimentos em série
expõem este cenário agudo. Nesta sexta-feira 18, dia marcado para as
manifestações pró-governo, ele teme pela manutenção da paz social e pela
necessidade de intervenção das Forças Armadas nos conflitos de rua. "Eu
não quero que este último recurso seja acionado", diz Marco Aurélio.
O ministro do STF afirma que o juiz Sergio Moro não seguiu a lei ao
divulgar os grampos com gravações de Lula e da presidente Dilma
Rousseff. Marco Aurélio também repudia o pensamento de que o Supremo
seja uma redoma de proteção a Lula.
O STF foi inundado por ações contra a posse do ex-presidente como
ministro-chefe da Casa Civil, ainda suspensa. Até agora, 10 processos,
seis dos quais estão sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes —
considerado o mais crítico ao governo na Suprema Corte. O décimo
processo, uma ação cautelar ajuizada por um advogado de Santa Catarina,
ficou com Marco Aurélio. A ação foi a primeira a ser protocolada, ainda
ontem, e teve o seguimento negado pelo ministro.
Marco Aurélio diz que é hora de paz social e pede que se tire o pé do
acelerador. “Vamos acreditar nas nossas instituições, na equidistância
dos juízes e aguardar que as coisas aconteçam, mas não de cambulhada,
como vem ocorrendo”, diz Marco Aurélio. A seguir, sua entrevista a
IstoÉ:
ISTOÉ - O clima é por renúncia já. O sr. permanece defendendo a renúncia coletiva?
Marco Aurélio Mello - Isso seria em qualquer país
com uma compenetração maior e que revele avanço cultural. Sendo assim,
nós já teríamos tido renúncias. Mas não ocorre no Brasil, onde os
ocupantes se apegam aos cargos. Mas vamos deixar que as instituições
funcionem. Não incendiemos o Brasil. Não interessa a quem quer que seja.
ISTOÉ - Mas esta é a temperatura...
Marco Aurélio - A temperatura está alta e é hora de
tirar o pé do acelerador. Quando se afunda muito o pé, se atropela a
ordem jurídica e isso é péssimo. Isso só revela insegurança para todos.
ISTOÉ - O sr. já falou sobre a preocupação das
manifestações se radicalizarem, com o surgimento de um cadáver. Nesta
sexta-feira, 18, está marcada manifestação pró-governo. Nesta
temperatura em que o País está, o que o sr. espera?
Marco Aurélio- Continuo muito preocupado com
conflitos de rua, o que será péssimo. Não sabemos os desdobramentos.
Não sabemos se a polícia militar conseguirá segurar as ruas. A minha
expectativa é que seja mantida a paz social. De qualquer forma, nós
sabemos que há um último recurso. E eu não quero que esse último recurso
seja acionado, ou seja, uma intervenção das Forças Armadas.
ISTOÉ - O sr. acha que estamos sob este risco?
Marco Aurélio - O risco é sempre latente. É só não
se ter o controle a que me referi pelas forças normais repressivas pela
Polícia Militar e aí, evidentemente, todos nós, cidadãos brasileiros
corrermos riscos. Nessa hora, evidentemente, se vê emblemática a
importância, mesmo sem interferência, o baluarte das Forças Armadas.
ISTOÉ - Como o sr. avalia os conteúdos da gravação do ex-presidente Lula e da presidente Dilma?
Marco Aurélio - Eu continuo convencido de que a ida
de Lula para o ministério implica uma tentativa de tábua de salvação do
governo. E de resgate de algo ligado ao partido. Eu não posso presumir o
excepcional: que um ex-presidente da República apenas vá auxiliar a
titular atual para ter essa prerrogativa de foro privilegiado, se é que é
prerrogativa de ser julgado pelo Supremo. O objetivo seria realmente
reverter o quadro. Porque, não há a menor dúvida, o quadro se encaminha a
cada dia para o impeachment. Nós não podemos permanecer como estamos,
sem governabilidade há vários meses, para não falar em ano. O Brasil
está sangrando. A crise econômica e financeira se aprofundando.
ISTOÉ - Como o sr. avalia a sequência de fatos desta semana?
Marco Aurélio - Não compreendo certas coisas.
Primeiro, a divulgação do objeto da colaboração do senador Delcídio
Amaral. Agora, esse problema do grampo e a divulgação do grampo
determinado pelo juiz Sergio Moro. Surge o nome e a fala da presidente
da República na conversa. Aí teria que haver o deslocamento, guardado em
segredo, dessa interceptação para o Supremo. O Supremo não tinha que
autorizar a gravação, porque se autorizou um grampo em um telefone que
não era da presidente da República. Mas a divulgação não poderia
ocorrer. Isso é ruim e acaba incendiando o País.
ISTOÉ - O senhor acredita que o juiz Sergio Moro cometeu uma ilegalidade?
Marco Aurélio - Não estou julgando colegas. Estou
dizendo o que é a lei. Você tem que guardar o objeto da interceptação.
Porque o sigilo é afastado, mas é afastado, em termos, para instrução
criminal. Quando você quebra, por exemplo, o sigilo financeiro, os dados
ficam envelopados. Eu não sei o que está havendo que, ao invés de se
utilizar as peças no processo, está se utilizando em público. E isso
deixa a sociedade em polvorosa.
ISTOÉ - O juiz Sergio Moro argumentou que os governados tinham o direito de saber o que os governantes pensam.
Marco Aurélio - Acima dos governados e do interesse
dos governados, está a lei. Fora da lei, não há salvação. Não há
justificativa para se deixar de cumprir a lei.
ISTOÉ - O sr. entende que houve tentativa de obstrução à Justiça pela presidente Dilma e do ex-presidente Lula?
Marco Aurélio – Não vejo por aí. Penso que já estava
escolhido, com posse marcada. Se diz que o diálogo gravado da remessa
com o termo de posse sugere que seria para evitar o surgimento de uma
prisão e um obstáculo. Mas isso não é obstrução da Justiça.
ISTOÉ - O que significa, a essa altura, o ex-presidente ter foro privilegiado?
Marco Aurélio - O foro por prerrogativa, ele será
julgado pelo Supremo. Mas será que ele aceitou o cargo apenas para isso?
Entendo que não. Ele aceitou o cargo para tentar salvar o governo da
titular que ele próprio indicou. Penso que a ideia é a de que ele dê uma
interlocução política com o Congresso Nacional, que é o que falta.
ISTOÉ - O senhor declarou que a observância da lei
não se dá só na Justiça do Paraná. Passa a sensação de que, com o caso
no Supremo, Lula está protegido.
Marco Aurélio - Isso é de um absurdo incrível.
Entender que só vai haver percepção criminal séria se permanecer no
Paraná, que vindo para o Supremo não se terá essa percepção. Isso é uma
inversão da ordem natural das coisas. O Supremo é o guardião maior da
Constituição e ele atua sem perceber capa de processo. Eu tenho o juiz
Sergio Moro como um juiz, não um justiceiro. Por que você imagina que,
se o caso fica no Paraná, então haverá realmente seriedade? Vindo para o
Supremo, não teremos essa seriedade? É algo terrível. É um enfoque que
não se pode agasalhar.
ISTOÉ - Numa outra gravação, o ex-presidente Lula
desqualifica a Corte, chamando-a de acovardada, entre outras coisas.
Como o sr. percebe isso?
Marco Aurélio - É o direito de espernear. São
declarações feitas para uma pessoa determinada. Agora, ele extravasa e
aí isso se potencializa e se dá um crédito enorme a essas falas, o que
não é bom. Vamos deixar as instituições funcionarem com serenidade. Não
interessa a quem quer que seja incendiar o país.
ISTOÉ - O governo justifica a gravação, mostra o
termo de posse não assinado pela presidente, e que a conversa teria se
dado no contexto que o ex-presidente Lula talvez não pudesse estar
presente por conta de Dona Marisa estar doente.
Marco Aurélio - Se ele já havia sido escolhido, e se
remeteu o termo de posse para ele assinar possivelmente, é uma
consequência. É natural. O que nós precisamos em época de crise, é
guardar princípios e valores. Em direito, o meio justifica um fim. Não o
fim justifica o meio. A legislação em vigor tem que ser observada. Ela
submete a todos. Eu não posso criar o critério de plantão. Ninguém tem
esse direito. Nem mesmo integrantes do Supremo. Muito menos um juiz de
primeira instância.
ISTOÉ - O resumo nesses episódios na sua avaliação...
Marco Aurélio - Eu penso que estamos abandonando parâmetros. Isso é péssimo.
ISTOÉ - Como o sr. observa a fala do ex-presidente Lula na gravação grampeada, em relação a ministra Rosa Weber?
Marco Aurélio - Ele pode ter falado numa tentativa
de se conversar para convencer. Mas nós ocupamos uma cadeira vitalícia,
e só atuamos segundo a nossa ciência e consciência. Não se consegue
suplantar o convencimento, mediante uma pressão qualquer, de um juiz,
muito menos de um integrante do Supremo. Nós não estamos sujeitos à
pressões. Nem à pressão da rua. Vamos acreditar nas nossas instituições,
na equidistância dos juízes e aguardar que as coisas aconteçam, mas não
de cambulhada, como vem ocorrendo.Não vejo como obstrução da Justiça.
Penso que o que ele queria era um exame favorável para definir-se o
ministério público competente, matéria que em termos ficou prejudicada.
Tanto que eu propus o sobrestamento do agravo para aguardar agora a
manifestação do ministério público do Paraná e do juiz Sergio Moro,
porque a juiza de São Paulo declinou para o Paraná.
ISTOÉ – Como o senhor vê a sensação passada de que o STF é uma redoma protetora do ex-presidente Lula?
Marco Aurélio - Eu repudio essa assertiva. Eu me
sinto indignado quando dizem que podemos ser benevolentes. A que ponto
nós chegamos? Isso é inimaginável. É uma ofensa a quem hoje ocupa a
cadeira no Supremo. Não temos no País apenas um único juiz sério. Temos
milhares de juízes.